terça-feira, 1 de dezembro de 2015

“O índio e a terra, não dá pra separar”


            Desde os primórdios das civilizações, a terra se constituiu como um elemento de grande importância. Nesse contexto, a relação da terra com o indígena adquire significados próprios, pois eles a consideram como uma extensão do próprio ser. A terra é para o índio seu chão cultural, referência de valores e manifestação das crenças. A terra é o chão de sua história, de sua cultura, de sua união, de sua sobrevivência.
A luta dos povos indígenas para defender e garantir a posse de seus territórios durou séculos, até que o governo entendesse a importância de preservar o patrimônio indígena. Assim, a legislação brasileira, definiu como terra indígena, a terra tradicionalmente ocupada pelas nativos, habitada em cárter permanente e utilizada para atividades produtivas e preservação dos recurso naturais e minerais.
         Ao analisar apenas uma síntese dessa situação, podemos pensar que foi um acordo justo, sem envolver interesses e conflitos, mas a situação real foi bem diferente. Por isso, vamos buscar os antecedentes, ainda no século final do século XIX.


A criação da Funai como moeda de troca
Capa do livro “Memoria do SPI”,
 com mais de 400 fotos e 25 artigos

  • 1º) São realizados estudos de identificação e pesquisas geográficas, antropológicas, ambientais, a cargo da Funai.
  • 2º) É feita a delimitação, que é repassada via Diário Oficial para o Ministério da Justiça, 3º) Com a autorização, as terras tornam-se declaradas após a realização de novos estudos, de forma que a área torna-se de uso exclusivo dos índios e a demarcação é autorizada. A demarcação física fica a cargo da Funai;
  • 4º) É feito um levantamento fundiário pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para avaliar as benfeitorias realizadas pelos proprietários da área que agora pertence aos índios, pois o dono das terras perde a posse, mas recebe uma indenização caso tenha feito algumas dessas benfeitorias no local;
  • 5º) As terras são homologadas pela Presidência da República;
  • 6º) É feita a retirada dos ocupantes não índios da área, com pagamento das eventuais indenizações;
  • 7º) É concluída a regularização e, portanto, a demarcação oficial com registro em cartório em nome da União;
  • 8º) A Funai torna-se responsável por interditar a área, a fim de garantir o isolamento e a proteção dos indígenas que ali habitam.

            Há 500 anos, os europeus desembarcaram nas terras brasileiras e encontraram povos com ricas e diferentes culturas. Houve exploração das nossas riquezas, exploração do trabalho indígena e toda a história que já conhecemos dos livros didáticos de história.
            Em 1822, o Brasil se tornou independente de Portugal, o que resultou várias mudanças, mas que teve uma contribuição quase nula para os povos indígenas, já que eles continuam sendo explorados pelos missionários jesuítas com a política de civilizar os indígenas”.


No início do século XX, ainda existiam personagens influentes seguindo a política de “civilização indígena”, como o diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, que incentivava a ideia de que os índios que não se sujeitassem à civilização deviam ser exterminados. Vergonhosamente, em 1907, o Brasil foi denunciado em um fórum internacional de Viena por massacrar seus índios. Nesse contexto, o governo foi encurralado e sobre pressão de outros países, criou em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), responsável por promover políticas indígenas.
Nos primeiros anos de existência, o SPI ganhou forte apoio, já que era liderado pela Marechal Candido Rondon, descendente de índios e defensor dos direitos indígenas.  O serviço consegui garantir a posse de pequenas porções de terras e protegê-los contra invasões, mas com passar dos anos, perdeu força e novamente, os indígenas passaram a ser considerados incapazes e foram submetidos ao regime de tutela, que só seria detido quando eles estivessem adaptados a civilização.
Anos depois, o governo ditatorial foi instalado no Brasil e três anos depois, em 1967, o Estado Brasileiro extingui o SPI e o substitui por uma nova organização: a Funai – Fundação Nacional do Índio. A Funai é um órgão indigenista oficial, vinculado ao Ministério da Justiça, e tem a finalidade de proteger e promover os direitos dos povos indígenas. São também atribuições da Funai identificar, delimitar, demarcar, regularizar e registrar as terras ocupadas pelos povos indígenas, garantindo assim um direito lutado por muitos anos.


Sede da Funai, em Brasília

Ao surgir, a missão da Funai era “integrar o índio, a um curto prazo de tempo, para o mesmo não prejudicar o desenvolvimento nacional.” Isso indica que o objetivo dessa organização era mais na esfera estratégica do que de amparo e assistência. Esta ideia é ressaltada por muitos pesquisadores e historiadores, como demonstra Márcio Santilli, ativista e político, ao destacar que o real interesse era afastar os povos nativos das áreas de interesse do governo, valorizadas por vastos recursos naturais e minerais.
Durante o período da ditadura, os militares mantiveram as rédeas na Funai, controlando em quais porções de terra dos índios poderiam ser colocados, sem levar em consideração processo étnicos e culturais, apenas fatores econômicos. Assim, os militares impediram que a Funai determinasse como território indígenas áreas povoadas por industrias, represas, minas com variados recursos minerais e outros pontos que poderiam vir a ser interesse no futuro.

Organização e mobilização dos povos indígenas
Por ser um vasto território, a situação indígena estava em casos muito particulares em cada região. No Centro-Oeste e Norte encontrava-se o maior número de povos, povos até mesmo que não eram considerados indígenas, como os “caboclos” do Acre e de Roraima (incorporados ao trabalho nas frentes seringalistas). Os índios das regiões Sul, Sudeste e Nordeste já apresentavam uma situação totalmente diferenciada. Como essa parte territorial possuía uma estrutura agrária, as populações viviam confinadas em pequenas reservas ou em comunidades dispersas.
Esses cenários levaram ao surgimento de grupos indígenas que lutavam pela demarcação de suas terras. Isso estimulou o espirito guerreiro dos índios, que estavam conscientes que era necessário agir de maneira organizada. Por isso, passaram a organizar assembleias indígenas a partir de 1975, liderados pelos caciques Marçal de Souza, Ailton Krenak, Mário Juruna, Marcos Terena e Raoni.
Mário Juruna ficou famoso por defender a demarcação das terras indígenas, sempre com um gravador para registrara tudo o que os homens diziam. Ele queria provar que as autoridades, na maioria das vezes, não cumpriam o que prometiam. Mais trade, Juruna foi eleito o primeiro deputado indígena no país, e levou seus companheiros de luta para o Congresso Nacional durante a assembleia constituinte de 1988. Assim, os caciques e chefes que lutavam pela causa indígena passaram a se tornar protagonistas da própria história, passaram a representar a si mesmos.


Como ocorre a demarcação de uma terra?
O processo de demarcação, regulamentado pelo Decreto nº 1775/96, é a forma administrativa para identificar e delimitar os limites do território tradicionalmente ocupado pelos indígenas. É uma competência realizada pelo Poder Executivo, que obedece a seguinte ordem:

Demarcação das terras indígenas  
Com a organização dos indígenas em grupos e chegada no Supremo Tribular Federal, teve início o processo de demarcação das terras indígenas. A constituição de 1988, declarava no art. 5º que "todos são iguais perante a Lei, sem distinções de qualquer natureza", de forma não era mais possível excluir os povos indígenas do direito territorial.
A partir de então, a Constituição passou a reconhecer a terra indígena como inalienável e imprescritível aos índios, e estabeleceu um prazo de cinco anos para a demarcação de todas as terras indígenas. Contudo, isso não ocorreu, e até os dias de hoje elas encontram-se em pendências jurídicas.
De acordo com dados da Funai, atualmente existem 462* terras indígenas regularizadas, o que representa cerca de 12,2% do território nacional, localizadas em todos os biomas, com maior concentração na Amazônia. De acordo com o Conselho Indígena Missionário (CIMI), ao todo, essas áreas ocupavam 105 672 003 hectares, divididos da forma como segue no quadro.



            A contagem populacional no Brasil, no quesito étnico, depende da auto declaração das pessoas. O censo de 2010 do IBGE apontou uma população de 817.963 pessoas que se identificavam como índios, sendo a maior parte delas, na região Amazônica.
            A maior parte das terras regularizadas, está concentrada na região Norte, seguida pelo Centro-Oeste, Nordeste e poucas porções no Sul e Sudeste. O gráfico a seguir ilustra a distribuição dessas terras por região, em porcentagem.


Distribuição das terras indígenas regularizadas por região administrativa

A Funai ainda mantém uma grande restrição em demarcar terras na porção Sudeste e Sul do país, de modo que os povos nativos conseguiram manter posse em áreas geralmente pequenas e esparsas. O único destaque percebido na região Sudeste, diz respeito a terra indígena de Jaguará, ocupada por índios guarani e localizada na região da grande São Paulo. Os povos guarani lutaram muito pela regularização, até que em maio de 2015, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinou a Portaria Declaratória N° 581 e declarou mais 532 hectares para ocupação legal destes povos, que já possuíam cerca de 15.969 hectares.


Mapa indicando a demarcação da Terra indígena Jaraguá na grande São Paulo

            A região Sul possui uma relação semelhante à da região Sudeste: pouquíssimas áreas demarcadas, o que gera intensos conflitos porque a população indígena residentes desta área não possui um espaço para cultivar sua própria cultura, seus hábitos e rituais. É justamente por isso, que nessas regiões se manifesta o maior número de conflitos fundiários e disputadas por terra, o que impõe ao Estado o desafio de pensar na situação de forma mais humana e promover a demarcação das terras indígenas no Sul e Sudeste. 



             Efeitos da demarcação

            A demarcação das terras indígenas ocasionou muitas consequências, cada uma dessas consequência apresenta características muito peculiares, de modo que generalizá-las torna-se enganoso.
            Movimentações contrárias à demarcação chamam cada vez mais atenção, promovidas por interessados em agronegócio, empreiteiras e industrias. Normalmente, o governo tende a seguir os passos de grandes empresários e da mídia, adiando os processos para ganhar tempo, mas a real intenção é deixar o processo de demarcação ainda mais lento. Um exemplo dessa prática é a proposta de emenda constitucional (PEC) 215/15.
A PEC 215 é uma proposta elaborada na Câmara que propõe alterar a Constituição para transferir ao Congresso (formado pela Câmara e Senado) a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Atualmente, somente o Poder Executivo, munido de seus órgãos técnicos, pode decidir sobre essas demarcações. Além disso, a PEC ainda proíbe a ampliação de terras já demarcadas e prevê a indenização aos proprietários.
A PEC foi criada em 2000 e ganhou destaque este ano graças ao presidente da casa, Eduardo Cunha. Em outubro deste ano, ela foi aprovada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, e agora em novembro, a decisão final foi passada para o Congresso. Os índios realizam vários protestos com o objetivo de barra a votação dessa emenda constitucional. O ex-cacique Lindomar Terena está na linha de frente contra a votação da PEC, e afirma que ela pode deixar os índios ainda mais vulneráveis e que “é um retrocesso para a árdua história de conquista dos nossos direitos". Terena lamenta que o “agronegócio tem avançado para cima do nosso território. Não existe vontade política para demarcar as terras, então quem vai sempre tombar nessa luta são os índios".
O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cleber Buzatto, também mantem uma postura crítica a situação. De acordo com ele, a “bancada ruralista, que representa grandes corporações nacionais e multinacionais do agronegócio**, quer impedir e inviabilizar todo e qualquer novo reconhecimento de território indígena no país. Se for aprovada em definitivo, a lei representará um risco de genocídio dos povos originários do Brasil nos próximos anos".
Para saber o final dessa complicada e injusta situação, temos que esperar a próxima etapa: a votação no Congresso. O caso está tão complicado, que outubro, o índio Lindomar Terena e outras lideranças indígenas estiveram na Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, para denunciar o "descaso" do governo com a situação dos indígenas no Brasil.

A demarcação por governo
A demarcação do território indígena ocorreu de maneira diferenciada durante cada governo que o país vivenciava. Dados muito atualizados, de agosto de 2015, coletados pela ISA – Instituto Socioambiental – demonstram que os maiores avanços ocorreram no governo do sociólogo Fernando Henrique Cardoso, enquanto o menor número de terras, no primeiro mandado e parte do segundo, de Dilma Rousseff.
A tabela abaixo demonstra o reconhecimento de Terras Indígenas nos governos dos presidentes José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.




Importância da demarcação
A demarcação de terras indígenas contribui para diversos pontos de interesse dos indígenas. Após a demarcação, os Estados e Municípios passaram a ter maiores condições de cumprir com suas atribuições e formular políticas indigenistas de desenvolvidas dentro e fora das terras indígenas.
A demarcação beneficia, indiretamente, a sociedade de forma geral, já que a garantia dos direitos territoriais dos indígenas contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, com a pluralidade de etnias e culturas.
A demarcação estabelece uma relação de paz e tranquilidade para os povos nativos. O cacique guarani Elpidio Pires explica que “todos os índios querem voltar no local onde nasceu. Os antepassados querem que a gente vá pra lá, andar em cima da nossa aldeia.”. O antropólogo Rubem Almeida compreende que essa ideologia vem da concepção de “(...) os guarani são a primeira semente plantada na terra. São como com as plantas. Se uma planta nasce em certo lugar, é dali. Os guarani entendem que pertencem a uma determinada terra - e não que a terra pertence a eles".

Conclusão
            Desde o início da demarcação das terras, o processo avançou muito. Infelizmente, até o momento, nem todo índio ocupa o território seu original. Muitos povos foram desalojados. A ocupação da terra é dinâmica, com histórico de violência e lutas desde o início da conquista pelos europeus e das primeiras entradas dos bandeirantes no interior. Mais recentemente, estas lutas vem diminuindo e a prática do diálogo está se tornando mais frequente.
Preciso de cuidado para que os avanços alcançados até o momento não atinja pontos de retrocesso, o que pode vir a acontecer caso a PEC 215 seja aprovada pelo Congresso. As mineradoras, por exemplo, são proibidas pela legislação de realização mineração em terras indígenas. Entretanto, há dois projetos de lei, em discussão no Congresso que tem por objetivo legalizar a prática, afirmando que os povos indígenas poderiam ficar com 2% do empreendimento. Por isso, é necessário cautela e consciência ao tratar das questões sobre os povos nativos, porque muitas vezes, eles são vítimas do pior tipo de violência possível: o da própria sociedade. 


Referências Bibliográficas

SUPERINTERESSANTE. Milanez; Felipe. “A terra sagrada dos índios”. Disponível em < http:// super.abril.com.br/ comportamento/a-terra-sagrada-dos-indios>. Acesso em 28 de novembro de 2015.

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CARTA CAPITAL. Pellegrini; Marcelo. “PEC 215 é aprovada em comissão da Câmara. Quais os próximos passos?”. Disponível em <http://www.cartacapital.com.br/politica/pec-215-e-aprovada-em-comissao-da-camara-quais-os-proximos-passos-6520.html>. Acesso em 28 de novembro de 2015.

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CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO (CIMI). “Situação Fundiária das Terras Indígenas no Brasil”. Disponível em <http://www.djweb.com.br/história/textos/terrasindigenas.htm>. Acesso em 28 de novembro de 2015.

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INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL (ISA). “Demarcações nos últimos seis governos”. Disponível em <http://pib.socioambiental.org/pt/c/0/1/2/demarcacoes-nos-ultimos-governos>. Acesso em 28de novembro de 2015. 

Júlia Fernandes Sousa
Luara  Almeida 

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