Desde os primórdios das civilizações, a terra se constituiu como um
elemento de grande importância. Nesse contexto, a relação da terra com o indígena adquire significados
próprios, pois eles a consideram como uma extensão do próprio ser. A terra é
para o índio seu chão cultural, referência de valores e manifestação das
crenças. A terra é o chão de sua história, de sua cultura, de sua união, de sua
sobrevivência.
A luta dos povos
indígenas para defender e garantir a posse de seus territórios durou séculos,
até que o governo entendesse a importância de preservar o patrimônio indígena.
Assim, a legislação brasileira, definiu como terra indígena, a terra tradicionalmente
ocupada pelas nativos, habitada em cárter permanente e utilizada para
atividades produtivas e preservação dos recurso naturais e minerais.
Ao analisar apenas uma síntese dessa situação, podemos pensar que foi um acordo justo, sem envolver interesses e conflitos, mas a situação real foi bem diferente. Por isso, vamos buscar os antecedentes, ainda no século final do século XIX.
A criação da Funai como moeda de troca
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Capa do livro “Memoria do SPI”,
com mais de
400 fotos e 25 artigos
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- 1º) São realizados estudos
de identificação e pesquisas geográficas, antropológicas, ambientais, a
cargo da Funai.
- 2º) É feita a delimitação,
que é repassada via Diário Oficial para o Ministério da Justiça, 3º) Com a
autorização, as terras tornam-se declaradas após a realização de novos
estudos, de forma que a área torna-se de uso exclusivo dos índios e a
demarcação é autorizada. A demarcação física fica a cargo da Funai;
- 4º) É feito um levantamento
fundiário pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra)
para avaliar as benfeitorias realizadas pelos proprietários da área que
agora pertence aos índios, pois o dono das terras perde a posse, mas
recebe uma indenização caso tenha feito algumas dessas benfeitorias no
local;
- 5º) As terras são
homologadas pela Presidência da República;
- 6º) É feita a retirada dos
ocupantes não índios da área, com pagamento das eventuais indenizações;
- 7º) É concluída a
regularização e, portanto, a demarcação oficial com registro em cartório
em nome da União;
- 8º) A Funai torna-se
responsável por interditar a área, a fim de garantir o isolamento e a
proteção dos indígenas que ali habitam.
Há 500 anos, os
europeus desembarcaram nas terras brasileiras e encontraram povos com ricas e
diferentes culturas. Houve exploração das nossas riquezas, exploração do
trabalho indígena e toda a história que já conhecemos dos livros didáticos de
história.
Em 1822, o Brasil
se tornou independente de Portugal, o que resultou várias mudanças, mas que
teve uma contribuição quase nula para os povos indígenas, já que eles continuam
sendo explorados pelos missionários jesuítas com a política de civilizar os
indígenas”.
No início do
século XX, ainda existiam personagens influentes seguindo a política de
“civilização indígena”, como o diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering,
que incentivava a ideia de que os índios que não se sujeitassem à civilização
deviam ser exterminados. Vergonhosamente, em 1907, o Brasil foi denunciado em
um fórum internacional de Viena por massacrar seus índios. Nesse contexto, o
governo foi encurralado e sobre pressão de outros países, criou em 1910, o
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), responsável por promover políticas
indígenas.
Nos primeiros anos
de existência, o SPI ganhou forte apoio, já que era liderado pela Marechal
Candido Rondon, descendente de índios e defensor dos direitos indígenas.
O serviço consegui garantir a posse de pequenas porções de terras e
protegê-los contra invasões, mas com passar dos anos,
perdeu força e novamente, os indígenas passaram a ser considerados incapazes e
foram submetidos ao regime de tutela, que só seria detido quando eles
estivessem adaptados a civilização.
Anos depois, o governo ditatorial foi
instalado no Brasil e três anos depois, em 1967, o Estado Brasileiro extingui o
SPI e o substitui por uma nova organização: a Funai – Fundação Nacional do
Índio. A Funai é um órgão indigenista oficial, vinculado ao Ministério da
Justiça, e tem a finalidade de proteger e promover os direitos dos povos
indígenas. São também atribuições da Funai identificar, delimitar, demarcar,
regularizar e registrar as terras ocupadas pelos povos indígenas, garantindo
assim um direito lutado por muitos anos.
Sede da
Funai, em Brasília
Ao surgir, a missão da Funai era
“integrar o índio, a um curto prazo de tempo, para o mesmo não prejudicar o
desenvolvimento nacional.” Isso indica que o objetivo dessa organização era
mais na esfera estratégica do que de amparo e assistência. Esta ideia é
ressaltada por muitos pesquisadores e historiadores, como demonstra Márcio
Santilli, ativista e político, ao destacar que o real interesse era afastar os
povos nativos das áreas de interesse do governo, valorizadas por vastos
recursos naturais e minerais.
Durante o período da ditadura, os
militares mantiveram as rédeas na Funai, controlando em quais porções de terra
dos índios poderiam ser colocados, sem levar em consideração processo étnicos e
culturais, apenas fatores econômicos. Assim, os militares impediram que a Funai
determinasse como território indígenas áreas povoadas por industrias, represas,
minas com variados recursos minerais e outros pontos que poderiam vir a ser
interesse no futuro.
Organização e mobilização dos povos
indígenas
Por ser um vasto território, a situação
indígena estava em casos muito particulares em cada região. No Centro-Oeste e
Norte encontrava-se o maior número de povos, povos até mesmo que não eram
considerados indígenas, como os “caboclos” do Acre e de Roraima (incorporados
ao trabalho nas frentes seringalistas). Os índios das regiões Sul, Sudeste e
Nordeste já apresentavam uma situação totalmente diferenciada. Como essa parte
territorial possuía uma estrutura agrária, as populações viviam confinadas em
pequenas reservas ou em comunidades dispersas.
Esses cenários levaram ao surgimento de
grupos indígenas que lutavam pela demarcação de suas terras. Isso estimulou o
espirito guerreiro dos índios, que estavam conscientes que era necessário agir
de maneira organizada. Por isso, passaram a organizar assembleias indígenas a
partir de 1975, liderados pelos caciques Marçal de Souza, Ailton Krenak, Mário
Juruna, Marcos Terena e Raoni.
Mário Juruna ficou famoso por defender
a demarcação das terras indígenas, sempre com um gravador para registrara tudo
o que os homens diziam. Ele queria provar que as autoridades, na maioria das
vezes, não cumpriam o que prometiam. Mais trade, Juruna foi eleito o primeiro
deputado indígena no país, e levou seus companheiros de luta para o Congresso
Nacional durante a assembleia constituinte de 1988. Assim, os caciques e chefes
que lutavam pela causa indígena passaram a se tornar protagonistas da própria história,
passaram a representar a si mesmos.
Como ocorre a demarcação de uma terra?
O processo de demarcação, regulamentado
pelo Decreto nº 1775/96, é a forma administrativa para identificar e delimitar
os limites do território tradicionalmente ocupado pelos indígenas. É uma
competência realizada pelo Poder Executivo, que obedece a seguinte ordem:
Demarcação das terras indígenas
Com a organização dos indígenas em
grupos e chegada no Supremo Tribular Federal, teve início o processo de
demarcação das terras indígenas. A constituição de 1988, declarava no art. 5º
que "todos são iguais perante a Lei, sem distinções de qualquer
natureza", de forma não era mais possível excluir os povos indígenas do
direito territorial.
A partir de então, a Constituição
passou a reconhecer a terra indígena como inalienável e imprescritível aos
índios, e estabeleceu um prazo de cinco anos para a demarcação de todas as
terras indígenas. Contudo, isso não ocorreu, e até os dias de hoje elas
encontram-se em pendências jurídicas.
De acordo com dados da Funai,
atualmente existem 462* terras indígenas regularizadas, o que representa cerca
de 12,2% do território nacional, localizadas em todos os biomas, com maior
concentração na Amazônia. De acordo com o Conselho Indígena Missionário (CIMI),
ao todo, essas áreas ocupavam 105 672 003 hectares, divididos da forma como
segue no quadro.
A contagem populacional no Brasil, no
quesito étnico, depende da auto declaração das pessoas. O censo de 2010 do IBGE
apontou uma população de 817.963 pessoas que se identificavam como índios,
sendo a maior parte delas, na região Amazônica.
A maior parte das terras regularizadas,
está concentrada na região Norte, seguida pelo Centro-Oeste, Nordeste e poucas
porções no Sul e Sudeste. O gráfico a seguir ilustra a distribuição dessas
terras por região, em porcentagem.
Distribuição das
terras indígenas regularizadas por região administrativa
A Funai ainda mantém uma grande
restrição em demarcar terras na porção Sudeste e Sul do país, de modo que os
povos nativos conseguiram manter posse em áreas geralmente pequenas e esparsas.
O único destaque percebido na região Sudeste, diz respeito a terra indígena de
Jaguará, ocupada por índios guarani e localizada na região da grande São Paulo.
Os povos guarani lutaram muito pela regularização, até que em maio de 2015, o
Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assinou a Portaria Declaratória N°
581 e declarou mais 532 hectares para ocupação legal destes povos, que já
possuíam cerca de 15.969 hectares.
Mapa indicando a
demarcação da Terra indígena Jaraguá na grande São Paulo
A região Sul possui uma relação
semelhante à da região Sudeste: pouquíssimas áreas demarcadas, o que gera
intensos conflitos porque a população indígena residentes desta área não possui
um espaço para cultivar sua própria cultura, seus hábitos e rituais. É
justamente por isso, que nessas regiões se manifesta o maior número de
conflitos fundiários e disputadas por terra, o que impõe ao Estado o desafio de
pensar na situação de forma mais humana e promover a demarcação das terras
indígenas no Sul e Sudeste.
Efeitos da demarcação
A demarcação das terras indígenas ocasionou muitas consequências, cada
uma dessas consequência apresenta características muito peculiares, de modo que
generalizá-las torna-se enganoso.
Movimentações contrárias à demarcação chamam cada vez mais atenção, promovidas
por interessados em agronegócio, empreiteiras e industrias. Normalmente, o
governo tende a seguir os passos de grandes empresários e da mídia, adiando os
processos para ganhar tempo, mas a real intenção é deixar o processo de
demarcação ainda mais lento. Um exemplo dessa prática é a proposta de emenda
constitucional (PEC) 215/15.
A PEC 215 é uma proposta elaborada na
Câmara que propõe alterar a Constituição para transferir ao Congresso (formado
pela Câmara e Senado) a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas.
Atualmente, somente o Poder Executivo, munido de seus órgãos técnicos, pode
decidir sobre essas demarcações. Além disso, a PEC ainda proíbe a ampliação de
terras já demarcadas e prevê a indenização aos proprietários.
A PEC foi criada em 2000 e ganhou
destaque este ano graças ao presidente da casa, Eduardo Cunha. Em outubro deste
ano, ela foi aprovada por uma comissão especial da Câmara dos Deputados, e
agora em novembro, a decisão final foi passada para o Congresso. Os índios
realizam vários protestos com o objetivo de barra a votação dessa emenda
constitucional. O ex-cacique Lindomar Terena está na linha de frente contra a
votação da PEC, e afirma que ela pode deixar os índios ainda mais vulneráveis e
que “é um retrocesso para a árdua história de conquista dos nossos
direitos". Terena lamenta que o “agronegócio tem avançado para cima do
nosso território. Não existe vontade política para demarcar as terras, então
quem vai sempre tombar nessa luta são os índios".
O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário, Cleber
Buzatto, também mantem uma postura crítica a situação. De acordo com ele, a
“bancada ruralista, que representa grandes corporações nacionais e
multinacionais do agronegócio**, quer impedir e inviabilizar todo e qualquer
novo reconhecimento de território indígena no país. Se for aprovada em
definitivo, a lei representará um risco de genocídio dos povos originários do
Brasil nos próximos anos".
Para saber o final dessa complicada e
injusta situação, temos que esperar a próxima etapa: a votação no Congresso. O
caso está tão complicado, que outubro, o índio Lindomar Terena e outras
lideranças indígenas estiveram na Organização dos Estados Americanos (OEA), em
Washington, para denunciar o "descaso" do governo com a situação dos
indígenas no Brasil.
A demarcação por governo
A demarcação do território indígena
ocorreu de maneira diferenciada durante cada governo que o país vivenciava.
Dados muito atualizados, de agosto de 2015, coletados pela ISA – Instituto
Socioambiental – demonstram que os maiores avanços ocorreram no governo do
sociólogo Fernando Henrique Cardoso, enquanto o menor número de terras, no
primeiro mandado e parte do segundo, de Dilma Rousseff.
A tabela abaixo demonstra o
reconhecimento de Terras Indígenas nos governos dos presidentes José Sarney,
Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da
Silva e Dilma Rousseff.
Importância da demarcação
A demarcação de terras indígenas
contribui para diversos pontos de interesse dos indígenas. Após a demarcação,
os Estados e Municípios passaram a ter maiores condições de cumprir com suas
atribuições e formular políticas indigenistas de desenvolvidas dentro e fora
das terras indígenas.
A demarcação beneficia, indiretamente,
a sociedade de forma geral, já que a garantia dos direitos territoriais dos
indígenas contribuem para a construção de uma sociedade mais justa e
igualitária, com a pluralidade de etnias e culturas.
A demarcação estabelece uma relação de
paz e tranquilidade para os povos nativos. O cacique guarani Elpidio Pires
explica que “todos os índios querem voltar no local onde nasceu. Os
antepassados querem que a gente vá pra lá, andar em cima da nossa aldeia.”. O
antropólogo Rubem Almeida compreende que essa ideologia vem da concepção de
“(...) os guarani são a primeira semente plantada na terra. São como com as
plantas. Se uma planta nasce em certo lugar, é dali. Os guarani entendem que
pertencem a uma determinada terra - e não que a terra pertence a eles".
Conclusão
Desde o início da demarcação das terras, o processo avançou muito.
Infelizmente, até o momento, nem todo índio ocupa o território seu original.
Muitos povos foram desalojados. A ocupação da terra é dinâmica, com histórico
de violência e lutas desde o início da conquista pelos europeus e das primeiras
entradas dos bandeirantes no interior. Mais recentemente, estas lutas vem
diminuindo e a prática do diálogo está se tornando mais frequente.
Preciso de cuidado para que os avanços
alcançados até o momento não atinja pontos de retrocesso, o que pode vir a
acontecer caso a PEC 215 seja aprovada pelo Congresso. As mineradoras, por
exemplo, são proibidas pela legislação de realização mineração em terras
indígenas. Entretanto, há dois projetos de lei, em discussão no Congresso que
tem por objetivo legalizar a prática, afirmando que os povos indígenas poderiam
ficar com 2% do empreendimento. Por isso, é necessário cautela e consciência ao
tratar das questões sobre os povos nativos, porque muitas vezes, eles são vítimas
do pior tipo de violência possível: o da própria sociedade.
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